Contratamos uma agência em Latacunga, a
Volcan Route Expeditions, para termos o necessário apoio em termos de material e de um guia qualificado. Tanto em termos de um, como de outro, fomos muito bem servidos. O nosso guia, Julian, é uma pessoa muito simpática, e um profissional excelente e com muita experiência. Basta dizer que no seu currículo tem aproximadamente 600 subidas ao cume do Cotopaxi! Tenho a certeza que ele foi uma peça fundamental do nosso sucesso.

Devo confessar que estou a escrever o resto deste texto duas semanas depois de ter subido ao cume do Cotopaxi. Desde aquele dia, com a respiração ofegante e pernas cambaleantes a 5897m de altitude, até hoje, sentado na nossa sala na calma vila de Celorico de Basto, já passei pela metrópole de Quito, uma visita à metade do mundo, três viagens de avião com uma breve passagem pelos aeroportos de Miami e Madrid, o reencontro com família e amigos, a apresentação na escola, as reuniões de início do ano lectivo, as idas a Lisboa, o concerto de Madonna, o início das aulas… Terei deixado passar demasiado tempo para pôr “preto no branco” aquilo que senti naquele dia? Será que estes dias alteraram os meus sentimentos, a minha percepção em relação a esta nossa última grande aventura na América do Sul? Talvez… Hoje, de que me lembro mais?

Vejo-me de crampons e piolet agarrados à neve, fazendo o esforço por subir aquela parede com inclinação de 70°, o último obstáculo rumo ao cume. Parei várias vezes, exausto. Já estava a percorrer os glaciares há quase seis horas, cinco das quais em escuridão. Saí do refúgio com muitos receios, sendo um dos maiores o caminhar na escuridão, mas rapidamente percebi que ela era um dos meus melhores aliados. Nela, não se vêm as inclinações acentuadas das vertentes, as enormes distâncias a percorrer, as crevasses a atravessar, o abismo branco que está para baixo… Só caminhamos, seguindo o guia. Um pé atrás do outro. Piolet, bastão, passo, passo… Por vezes, o declive é tanto que o pé do lado da vertente é sujeito a um esforço enorme. Muda-se a posição, caminha-se de lado. Não está frio. Transpiro muito. Paramos de vez em quando. Não me sinto demasiado cansado. Na realidade, nem me sento. Olho para baixo. Uma rampa branca até onde a luz do frontal alcança e depois… vazio. A neve do glaciar também se ressente desta noite pouco gelada e por vezes afundamo-nos a caminhar.

Começa a clarear. Um grupo segue à nossa frente. A inclinação começa novamente a aumentar. Seguimos numa vertente à nossa direita, com o piolet nela enterrado e os pés seguindo o trilho estreito. Dobramos a vertente e… ainda falta tanto! E ainda temos de subir esta parede. Cravar os crampons e a ponta do piolet na neve e subir. Enterro-me na neve, sinto-me sem forças. Estou exausto. Penso: “Não posso mais, não posso mais!” Paro, respiro, olho para a parede à minha frente, para o guia e para a Carla, acima de mim. Já falta pouco… Tenho de continuar! Afinal ainda tenho forças… Chegamos à rampa final. A inclinação é mais suave. O grupo à nossa frente já vem a descer. Quer dizer que já estamos mesmo perto! Felicitamo-nos mutuamente. E chegamos. Olho em redor. Nada mais alto. De um lado, vê-se a montanha, as nuvens abaixo, outras montanhas ao longe… Do outro, a cratera, quase completamente envolta em neblina. Só lhe vejo um pouco do rebordo. O guia abraça-nos e dá-nos os parabéns. Mas não tenho ânimo para tirar fotos. Digo ao guia que isto de subir montanhas não é para mim mas ele responde-me que, quando era novo, também dizia isso mas depois regressava sempre. Bebo água e tento dar uma trinca no chocolate que trazia na mochila, agora congelado.

Só tenho um pensamento na cabeça: tenho de descer por onde subi. E assim foi. Desta vez, à frente. Tal como na subida, algumas instruções rápidas do guia, uns passos iniciais hesitantes, e depois… Cada um por si. Tive receio, no início. Descer de costas a parede que tinha subido há pouco tempo. Descer a vertente inclinada, agora à nossa esquerda. Piolet agora na mão esquerda, mão direita na neve. Um pé de cada vez, devagar. Não se olha para baixo. Só para os pés, para as mãos, para a neve. E passamos. Senti-me mais confiante. Caminhava com mais destreza. Parava para admirar a paisagem. Tirei algumas fotos. Mas o pensamento não tinha passado; tinha de descer. A corda dava esticões; ia depressa demais. Até chegar ao refúgio, olhei poucas vezes para trás. Como tinha subido aquilo tudo? Se tivesse aquela visão ao subir, não o teria feito. Ou teria?... Antes de subir, pedi à montanha pela minha segurança. E quando cheguei, agradeci ao Cotopaxi pelo cume, mas principalmente pela visita segura. E agora? Sinto saudades. Estou feliz por o ter feito, por a montanha me ter deixado ir lá cima, por ter conseguido corresponder. E, por estranho que pareça, e em contraste com o que senti no cume, uma parte de mim quer regressar lá, à montanha, e, quem sabe, talvez outro cume.
